segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Um conto de natal...

Caminhei pelas ruas escuras e solitárias; Ruas do meu Império. Sou o predador absoluto, todos devem obediência a mim e todos se curvam com um simples jogo de palavras, porém é tudo tão pálido, tão mórbido e nem o brilho das luzes nos enfeites conseguem me dar um pouco de alegria. Ando pelas ruas, vielas, alamedas. Cruzo com dezenas de rostos incógnitos, envoltos em um misterioso ar de impunidade. Todos são tão monstruosos como eu, todos são pecadores. Eles julgam suas vaidades como a única verdade.

Sentem suas vidas sendo dizimadas ao meu lado, desviam seus olhares, se afastam. E eu? Sinto o sangue passando por suas veias, sinto o cheiro do alimento, sinto a Besta gritar em meu interior. Sigo meu caminho, passo a passo. Tudo tão lento, tudo tão simples. Cada homem e mulher com seus compromissos e atrasos. A humanidade sempre correu contra o tempo e para mim ele já não importa.

No chão molhado pela tempestade vejo um pequeno folheto. Séculos sendo servido e paparicado me fizeram perceber como o simples ato de se abaixar é algo inconveniente e indelicado. Apanhei o pedaço disforme do impresso, nele o anúncio do coral de crianças que iria prestigiar a data tão querida pelo capitalismo.

Nada chamava minha atenção, nem mesmo um bom alimento encontrara. Caminhei pelas ruas escuras do velho centro do Império do Aço. Sozinho, mas sempre atento aos cheiros e as sombras. O tempo passou e a minha frente lá estava ela, a toda iluminada Estação Ferroviária, um dia berço do desenvolvimento e hoje a carcaça de um velho deus morto. Nas janelas iluminada, pequenas progênies pobres e mal vestidas, filhos de pais e mães que teimam em trazer ao mundo novos seres que não tiveram o direito de escolha. Em um poste próximo acho um bom local para prestigiar o espetáculo, a luz estava queimada e seria o local perfeito para quem quer ver e não ser visto.

Deixo as sombras da noite cobrirem meu rosto, minhas vestes e minha mente e assim começa a cantoria:

Noite feliz! Noite feliz!
O Senhor, Deus de amor,
pobrezinho nasceu em Belém.
Eis na lapa Jesus, nosso bem.
Dorme em paz, ó Jesus.
Dorme em paz, ó Jesus.
Noite de paz! Noite de amor!
Tudo dorme em redor,
entre os astros que espargem a luz,
indicando o Menino Jesus.
Brilha a estrela da paz.
Noite de paz! Noite de amor!
Nas campinas ao pastor,
Lindos anjos mandados por Deus,
Anunciam a nova dos céus;
Nasce o bom Salvador!
Noite de paz! Noite de amor!
Oh, que belo resplendor
Ilumina o Menino Jesus!
No presépio, do mundo eis a luz,
Sol de eterno fulgor!

Conforme a cantoria seguia não podia parar de pensar em toda a mentira que isso é. Não existe um salvador e o mundo está contaminado por Monstros como eu. Será que isto é a real sentença que nós Membros sofremos? Devemos ser monstros e humanos, mas nossos sentimentos são mentiras imaginárias e nossa monstruosidade reside em nossos corações. Não há sentido! Eles não nos conhecem. Todos os cordeiros sabem quando o lobo está próximo, todos eles sabem quando serão atacados. Posso sentir no nervosismo e apreensão de cada rosto, eles sabem, não há escapatória. Para mim, para ela e para ninguém. Como se séculos incontáveis passassem pela minha mente tive a sensação claustrofóbica do torpor, todo meu corpo amorteceu.

Quando olho para minha frente vejo um pequeno pirralho, beirando os três anos de idade me olhando diretamente nos olhos. Ele me fitava, ele conseguia penetrar meu véu de esquecimento. Como ele podia? Já ouvi falar de animais que atravessam esta mortalha, mas isso é motivado por suas mentes desprovidas de inteligência, mas o que essa criança está fazendo me olhando? Seria essa a dádiva de Deus aos infantes? Que eles seriam puros e imaculados, que se caso a morte encontrassem se sentariam ao lado do todo poderoso sem passar por julgamentos ou por rendições. Pela primeira vez em séculos me deparo com esse fato e pela primeira vez não sinto vontade de apagar as memórias daqueles que me vêem sem o meu desejo.

Não sei se movido pela curiosidade ou pela vaidade, abaixei-me e ofertei a minha mão ao pequeno, não com a agressividade de um monstro, mas com a suavidade da eternidade. Deixei que meu sangue esquentasse meu toque e me tornasse mais humano. Minhas veias iam se estufando e pude ver o sorriso no pequeno, ele ria conforme meu rosto ia tomando uma coloração róseo-escarlate. E ele segurou minha mão e sussurrou algo em seu idioma infantil.
Eu ainda estava tomado pela curiosidade desconcertante de ser visto por uma criança, mas me permiti e deixei que ele me levasse. Comecei a prestar atenção no que ele dizia e ele falava algo como “moço parece mamãe”. E fui levado pelo garoto, por alguns passos, incógnitos pela cantoria e pelo misticismo desta noite desigual.

Quando nos aproximamos de uma senhorita, que fez com que o garoto soltasse de minha mão e corresse em sua direção chamando a atenção de sua mãe, ela o pegou no colo e com minha audição imortal pude perceber a minha maldição “o tio parece você”. Quando a mulher olha em minha direção pude ver minha imagem e semelhança, como se fosse minha irmã mais jovem e apenas o passar dos anos nos diferenciasse. Senti novamente meu corpo se entorpecer. Como aquilo tudo acontecia? Quem são essas pessoas? Como uma reação básica de todos os cordeiros frente aos lobos, ela escondeu seu rebento e se embrenhou na multidão. Consegui ver em seus olhos a dúvida que foi criada. Sei bem quem são eles, mas suas vestes pobres, seu jeito rústico, sua vida difícil mentem o que já foi uma família nobre.

Esforcei-me e com a graça do sangue convoquei o pirralho e sua mãe, olhando nos olhos da matriarca disse em voz baixa e gentil.

- Graças ao teu filho hoje serás tua noite de sorte, os deuses sorriram para ti mulher. Hoje tua vida e de tua família irá mudar. Deverão ser pessoas novas, pois aqueles de meu sangue não devem vestir-se como indigentes, as crianças aprenderão a ler e teu marido irá trabalhar. Aprenderás uma arte e irá dar o melhor para teus filhos e teu marido. Agora apenas se lembrará que um velho estranho lhes agraciou com este presente, aproveitem está última noite.
Dei minhas costas aos dois, quando sinto algo puxando o joelho de minha calça. Olho para baixo e vejo o pirralho, novamente com seu ar insolente a me fitar os olhos. E ele me diz: “tio, tenha um feliz natal”.

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